16/03/2012
A cidadania como vivência de deveres e direitos inclui também o compromisso e o desafio de lançar, permanentemente, um olhar perscrutador sobre a realidade. A grande responsabilidade cidadã quanto aos rumos da história precisa sempre ser destacada. Já agora, na segunda década deste terceiro milênio, as análises vão estampando as marcas históricas do século 20, construídas em grande parte pela intervenção humana.
Os avanços e conquistas foram incontáveis. Até admiráveis, quando se contabilizam os progressos científicos, os engenhos tecnológicos, a força sedutora, por isso não menos pesada, do fenômeno da globalização. Mudanças determinantes, ditadas pela ciência e pela tecnologia, que têm avançado inteligentemente - seja pela capacidade de manipular geneticamente a própria vida dos seres vivos, ou a de criar uma rede de comunicação de alcance mundial.
Este é um tempo no qual a história alcançou uma aceleração espaventosa produzindo mudanças grandes. No Documento de Aparecida, nº 35, os bispos latino-americanos e caribenhos sublinham que “essa nova escala mundial do fenômeno humano traz consequências em todos os campos da vida social, impactando a cultura, a economia, a política, as ciências, a educação, o esporte, as artes e também, naturalmente, a religião”. Estas transformações, em razão dos rumos tomados ou dados, têm atingido de maneira preocupante o tesouro que pertence à pessoa humana, a abertura à transcendência.
O tesouro da pessoa humana não pode ser resumido apenas no que é admirável nas conquistas científicas e tecnológicas. Aqui se põe um enorme desafio, que inclui a compreensão do indivíduo na sua abertura sacrossanta para a transcendência, como algo seu constitutivo e inalienável. Sua desconsideração, ignorância ou manipulação, em razão de interesses utilitaristas, produz prejuízos e riscos para os rumos da história. Como no passado, agora também, e de maneira não menos preocupante, temos o horizonte da sociedade contemporânea povoado de relativizações éticas advindas do fechamento e da incompetência para a compreensão e vivência deste tesouro que é a abertura à transcendência.
É irrenunciável o princípio de que a pessoa humana é aberta ao infinito, isto é, a Deus. Esta abertura é caminho para a verdade e para o bem absolutos. Também é esta comunhão com Deus que capacita para o encontro com o outro e com o mundo. Sem esta abertura ao transcendente nenhuma pessoa consegue sair de si. Torna-se prisioneira, facilmente e cotidianamente, de uma condição egoística da própria vida. É a transcendência que capacita a pessoa a entrar numa relação de diálogo e de comunhão. A sociedade não pode e não consegue, com o indispensável equilíbrio, organizar-se e configurar-se sem que se respeite e se cultive a capacidade própria da pessoa de transcender.
É ilusão pensar e buscar uma sociedade justa quando se desrespeita a dignidade transcendente da pessoa humana. O primado de cada ser humano tem a prerrogativa de orientar a consciência e definir direções e configurações para todos os programas sociais, científicos e culturais. Não sendo assim, a pessoa será, inevitavelmente, instrumentalizada para projetos econômicos, social, político, por qualquer autoridade. Não raramente, em nome de pretensos progressos e da modernização da comunidade civil. Aqui está o “nó difícil de desatar” da questão ética na sociedade contemporânea, pensando mais diretamente a de nosso país. Todos são chamados a refletir sobre o futuro que deve ser buscado, o que exige o princípio irrenunciável da transcendência. Num rol de muitas questões sérias e preocupantes, devemos incluir a que trata sobre a grave cultura abortista, a investida irracional contra símbolos religiosos, ou a morosidade ética para a convicção da aplicação da chamada “Lei da Ficha Limpa”.
A orquestração que órgãos internacionais fazem ao celebrar acordos, por exemplo, com países emergentes da América Latina, beneficiando projetos para o desenvolvimento, em troca de controle demográfico que fomentam posições e entendimentos favoráveis ao crime do aborto, merece reação e posicionamento claro de todos.
Há manipulações na compreensão envolvendo os direitos da mulher para construir argumentos que justifiquem o atentado homicida contra a vida do nascituro. Este equívoco, resultado da falta de sentido e respeito à transcendência, atinge a família, num claro desígnio de sua desconstrução e vai se infiltrando no sistema educacional. Estes rumos estão produzindo riscos graves. É preciso reagir e lutar pelo respeito e obediência ao princípio da transcendência.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
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